Dromomania²

Privação de sono

Privar-se do sono é algo que fazemos com uma frequência muito maior desde o surgimento da internet. Digo isso, pois ter uma conexão discada que baixava 40Mb de dados a 3Kbps era um teste de paciência e perseverança. Imagina ver pornô com essa conexão? Muito antes do filme passar da metade do download já teria sido possível atingir o orgasmo numa quantidades de vezes que respeitaria as regras da sequência de Fibonacci. Porém, como bons internautas que somos (e brasileiros) a gente não desiste nunca e espera até terminar o download e perceber que um nerd sacana nomeou um filme infantil como “Jesse Jane – Heat”. E o inverso também acontece nos torrents até hoje. Enfim, divago...

A internet nos ajudou muito com as comunicações. Não precisamos mais utilizar meios menos eficientes como cartas e telegramas. Hoje temos, respectivamente, e-mail e twitter. Ou grunhimos ou dissertamos longos parágrafos em listas cujas pessoas certamente são menos ocupadas que nós. E por falar em “dissertar”, eu queria chamar a atenção para o argumento central deste texto que é a urgência. Se o meio de comunicação é praticamente instantâneo, então podemos encurtar também os prazos. Ou seja, se você leva uns 30 minutos para elaborar uma redação (de 20 linhas) e precisa apenas digitá-la (escrever toma muito mais tempo e habilidade), então a entrega da sua tarefa pode ser...amanhã! E lá sei vai suas preciosas horas de sono para cumprir os prazos que nossos professores/chefes/[pessoa hierarquicamente mais foda que você] exigem sem a menor idéia de que aquilo é só um décimo das nossas tarefas diárias. Sabe aquela piada inescrupulosa que diz “use aquele tempo livre entre a meia noite e as seis”? É exatamente esse tempinho que você usará sempre à partir do momento que entrar na faculdade ou assumir cargos de responsabilidade no seu trabalho.

A privação de sono nos causa danos que não são (na maioria das vezes) irreversíveis, mas certamente são bastante chatos enquanto ainda estão fazendo efeito no nosso cérebro e corpo. Olheiras, rosto inchado, sonolência e reflexos prejudicados são alguns dos sintomas mais típicos. O retardo mental que sofremos por dormir apenas 3 ou 4 horas por noite in a row vai nos assombrar o resto da vida, ou pelo menos, até o dia em que nossos colegas esqueçam as burradas que fizemos por estarmos menos alertas que o habitual.

Os efeitos da privação do sono vão ainda além do que nosso olho enxerga. Ficar várias noites dormindo pouco ou levar uma vida de quem não dorme pode acelerar os efeitos negativos do envelhecimento, prejudicar a memória e afetar sensivelmente o humor. Normalmente a pessoa que não dorme bem tem uma tendência maior a ser ranzinza ou depressiva (ou ambos), tem déficit de atenção (ou seja, a famosa lerdeza) e acaba ficando com uma aparência de anos mais velha do que realmente é.

Ainda há o fato de que não somente as outras pessoas nos sabotam com prazos, como também nós acabamos nos impondo limites cada vez mais distantes de sobrecarga de trabalho. Agimos como se pudéssemos realizar tudo em 24h ou durante 24h/dia durante semanas. Esquecemos que para chegarmos nesse estágio de evolução ainda falta alguns bons anos e talvez um enorme avanço da indústria farmacêutica para que possamos fazer estas façanhas sem arruinar nossos preciosos neurônios. Até lá continuamos pensando que somos seres robotizados capazes de qualquer coisa.


Não há nada pior do que querer estudar pra uma prova estando completamente sonolento. Você precisa ler várias vezes o mesmo parágrafo (dependendo da disciplina) para que ele faça algum sentido. Às vezes lemos um texto inteiro achando que memorizamos tudo e, no dia da prova, lembramos de meio parágrafo ou nem isso. Este efeito acontece porque nossas habilidades cognitivas ficam bastante prejudicadas e o nível de cansaço é diretamente proporcional à nossa incapacidade de armazenar conteúdos. É como querer fazer um teste de QI às três da manhã, sendo que você já veio de outras noites mal dormidas. Seu resultado poderá ser comparado com o de um macaco senil. Uma vez uma amiga minha me disse uma sábia frase: “mente sob stress não pensa”. E isso faz todo o sentido quando sentimos na pele os efeitos de uma semana de provas com noites e mais noites em claro.

Nosso cérebro atua de uma maneira muito interessante quando nos privamos de dormir. Ao contrário de diminuir a sua atividade, ele a aumenta para compensar os efeitos do cansaço. Por exemplo, se você tiver uma folha de cálculos para fazer, o cérebro tentará aumentar a atividade em uma determinada área para que você não seja um completo fracasso na sua tarefa. Porém, isso não quer dizer que fazer cálculos com sonolência irá fazer você ir bem na prova. Muito pelo contrário, o aumento da atividade não quer dizer, necessariamente, que você terá êxito na sua tarefa. Seu cérebro estará apenas tentando compensar o cansaço.


Se você acha que passar noites em claro não fará nada com seu corpo e seu cérebro, você devia repensar seus atos com grande urgência. Certamente que entregar uma tarefa no prazo realmente nos traz uma sensação de satisfação muito boa, porém os sacrifícios nem sempre compensam. É claro que falar é fácil, pois a realidade continua acontecendo lá fora e nos sugando todos os nossos minutos livres, porém é importante que estejamos conscientes de que a quantidade de trabalho que nos impomos é diretamente proporcional ao nosso envelhecimento precoce. No final das contas, não adianta muito também trabalharmos como burros de carga agora para aproveitarmos apenas na nossa velhice, quando já não pudermos fazer nada de divertido porque nossa saúde ficou lá atrás, junto com as noites mal dormidas. Talvez um dia conseguiremos alcançar o tão falado “equilíbrio” entre a nossa sanidade mental e a nossa avidez por fazer cada vez mais coisas ao mesmo tempo. Até lá, continuaremos dormindo pouco e reclamando que, mais uma vez, o dia já amanheceu.
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O Náufrago


Nirilberto de Jesus. Este era o cara. Um verdadeiro bon vivant. Funcionário de uma grande multinacional, Jesus (como era conhecido na empresa) se gabava de levar uma boa vida, ter belas mulheres, dinheiro, um bom carro e muita tendência para a solidão. Tinha sempre acompanhantes, mas nunca companhias.


Jesus tinha programado suas férias, faria um cruzeiro pelo litoral do mar vermelho. Há anos ele programava algo assim. Chega de férias no campo ou na praia. Agora ele iria passar seu precioso tempo em alto mar, conheceria mulheres interessantes e homens de negócios. Aos homens ele diria: Jesus estará sempre com você. Com as mulheres, usaria o trocadilho de sempre: "deixe Jesus penetrar na sua vida". Ridículo, mas surtia efeito...



Como todo homem abastado, Jesus não sabia arrumar casa, não passava as prórpias roupas e mal sabia dar nó em gravata, mas se preparou para o cruzeiro como um messias para o dilúvio.
Chegado o grande dia, Jesus se aboletou de sua cabine e lá estava ele, pronto para partir em sua grande aventura... Fotos, bebedeiras, farras, orgias...



Jesus aproveitou cada instante como se fosse o último, até que pego por uma tempestade inesperada enquanto tirava fotos no convés, caiu em alto mar e viu seu navio se afastar sem sentirem sua falta. Triste fim para um homem que só queria curtir solitariamente suas férias. Mas Jesus sempre foi obstinado. Viu atonitamente uma ilha vários metros à frente. Nadaria até ela e se seguraria de todas as maneiras em algum fio de esparança para sair vivo daquela. Nadou, perdeu as forças, mas chegou ao seu destino quando o dia já estava amanhecendo. Exausto, Jesus agradeceu ao pai por ter conseguido sobreviver. Agora vinha a pior parte: o que fazer sozinho em uma ilha totalmente desconhecida?



Jesus meditou, se acalmou e tomou uma decisão: não seria vencido tão facilmente. Filho de carpinteiro que era, construiria sozinho sua cabana, multiplicaria os peixes se preciso fosse para ter o que comer e esperaria. Esperaria pacientemente algum socorro.



Trabalhou como um mouro, construiu com cipós e pedaços de árvores sua cabana. Sentou-se e contemplou seu trabalho. Nunca usara tanto os músculos. Mas não se abateu, sabia que algo faltava: recolheu água da chuva e frutas para se alimentar. Percorreu a margem da ilha, pois parecia ser de uma floresta fechada e não queria perder o contato visual com o mar, caso algum navio aparecesse. Por isso não se deu ao
trabalho de explorar o local.



Jesus sentiu o corpo dilacerado, mas não sabia quanto tempo iria permanecer naquela ilha. Teria que racionar água e comida por dias, talvez meses ou anos. Lembrou-se de Tom Hanks, este pelo menos tinha a companhia de Wilson. Mas Jesus sempre foi solitário, recusava-se a se prender.



Limpou como uma doméstica seu novo lar, deixando a impressão que ali moraria pelo resto da vida, então fez tudo o que nunca fizera em sua própria casa.
Vencido pelo cansaço, Jesus deitou-se à entrada da cabana em um estrado feito de folhas e caiu em sono profundo, faminto e sem esperança. Dormiu, dormiu e dormiu. Dormiu tanto que nem percebeu a chegada de um iate que fazia um tour pelo local. Eram turistas procurando um lugar reservado para uma farra. O iate atracou, olharam para aquele corpo estendido e o reconheceram: "Este não é aquele cara que estava com a gente no navio?" "Sim, é ele mesmo. Vamos embora, ele não gosta de ser incomodado...". "É, acho que ele estava procurando justamente um lugar solitário para se encostar".



Se foram para outro lugar, deixando Jesus deitado quase desfalecido. E Jesus perdeu o melhor do cruzeiro: uma festa que acontecia do outro lado da ilha...

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Por que os gamers ainda são considerados nerds?


Ah, cara. Não sei. Mas é uma boa pergunta.

Talvez porque os nerds sempre se destaquem da multidão em quase tudo que fazem, seja jogar vídeo-games, jogar RPG, ser gênio na computação, apanhar na escola ou ser enterrado de cabeça pra baixo em uma lata de lixo. É difícil não notar aquela figura que não sabe se vestir direito, usa óculos de aro grosso, é magro demais/gordo demais e não possui habilidades com as mulheres, a não ser babar por elas. Mas isso não é uma habilidade, porque você também baba por algumas mulheres. E nem é muito nerd. E mesmo que seja isso não vem ao caso, porra! Presta atenção no assunto principal, cacete.

Enfim, os nerds se destacam nas atividades que desempenham, e acabam virando ícones daquelas atividades. Eles chamam atenção demais, por representarem o fracasso humano que nós não queremos ser. Mesmo que seja o Bill Gates, um nerd sempre representa o fracasso. Ok, o Bill Gates é um nerd rico, e poderia comprar você e toda sua família, e fazer linguiça com vocês. Mas mesmo com a capacidade de transformar qualquer pessoa em churrasco, eu não queria ser o Bill Gates. Pô, o cara é um nerd. Ele é O nerd. Ele pode ser rico, mas aposto que todo mundo continua tirando onda com o cara. Prefiro ser pobre a passar a vida sendo tirado.

Mentira; prefiro ser rico. Mas eu sou pobre, e todo mundo tira onda com a minha cara do mesmo jeito. É por isso que eu jogo vídeo-games, pra fugir dessa vida insatisfatória e dessas pessoas mesquinhas que me zoam.

Eu podia estar matando, eu podia estar passando fogo em geral, eu podia plantar uma bomba no banheiro depois da merenda com suco de uva. Mas eu preferi jogar vídeo-games. Basicamente é esse pensamento que define o nerd: um psicopata sem culhão para realizar massacres em escolas. Massacres em escolas são feitos por ex-nerds, que dão o passo adiante e entram para a história como MALUCOS, uma categoria diferente do nerd inofensivo.

Mas voltando ao ponto: o nerd é um cara que sofre no mundo real, e procura mundos alternativos para ser mais feliz. Nós chamamos isso de escapismo. Fontes comuns de escapismo são os livros, os filmes e o tóchico. Pessoas comuns praticam escapismo o tempo todo com livros e filmes. Pessoas cool praticam o escapismo com o tóchico e as dogras. Como os nerds não são pessoas normais e muito menos cool, eles optam por um meio termo como weapon of choice do escapismo: vídeogames.
Os videogames são ótimos para o nerd escapista, porque normalmente duram muito mais do que as duas horas de um filme, e qualquer Final Fantasy hoje em dia leva mais tempo pra ser terminado do que um livro. Aliás, qualquer Final Fantasy hoje em dia leva mais tempo pra ser terminado do que um prédio de 200 andares. Maravilha. Me botem nesse mundo irreal onde eu posso lançar magias e tacar fogo no rabo das pessoas apenas com o meu pensamento. Isso é MUITO melhor do que o mundo que passa no Jornal Nacional, vocês hão de concordar comigo.

Outra grande vantagem dos videogames sobre a vida real é a sensação de controle. Com o joystick na mão, você faz o que quiser no ritmo em que quiser (heh), algo um pouco diferente da vida real. Considere ainda que o nerd médio possua poucas habilidades sociais, o que redunda em pouquíssimo controle sobre o ambiente e sobre as pessoas á sua volta. Você sabe, pra controlar o comportamento das pessoas, você precisa se comunicar com elas, para entender o que elas querem e se você tem algo a oferecer a elas. Os nerds minimizam o contato com os demais seres humanos, portanto, controlam pouco o ambiente. Se voltar para os videogames é realmente algo muito natural se você pensar dentro dessa concepção.

Todos nós evitamos situações que não controlamos, pois nos sentimos inseguros nelas. Se o que você evita é a realidade como um todo, isso te deixa muito tempo livre na mão pra gastar com coisas que não sejam relacionamentos humanos. O mais engraçado é que os nerds evitam os relacionamento reais, mas vão buscá-los nos ambientes virtuais do Face ou do World of Warcraft, por exemplo. O ser humano é um ser social, de fato.

Tempo livre pra jogar gera um jogador inveterado. Como os nerds não são burros, apenas feios e bitolados, eles conseguem normalmente um desempenho razoável nos mais diversos jogos, colocando-se acima dos noobs, atingindo um certo status e granjeando o respeito que suas calças mijadas nunca lhes dariam no mundo real. Está lançada a semente para o nascimento de um hardcore gamer: dedicado demais á causa dos videogames, defensor do seu amor eletrônico e emblema definitivo do que é um jogador.

Embora os casual gamers venham crescendo muito desde o advento do Wii, ainda não aparecem em estatísticas, já que não levam essa parada de jogo muito á sério. Quem aparece e faz demandas ao mercado é o hardcore gamer que, como já vimos, tem grandes chances de ser um nerd.

Assim, o destaque involuntário dado a esses indivíduo losers, acaba recaindo sobre toda a classe dos gamers. O que é ruim sempre se destaca, e no caso dos gamers, o que se destaca é o nerd. A equação se fecha e temos o resultado final de porque os gamers ainda são considerados nerds. Obrigado meus 3 leitores. Vocês são ótimos. Joguem mais videogame. Caso não sejam nerds, obviamente.




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Dos Privilégios

Homem entra no bar. Se senta. Pede cervejas. Bebe. Não conversa. Não se diverte. Volta pra casa. Dorme. Noite ruim. É a vida.
 
Homem entra no bar. Carregado. Cadeira de rodas não permite subir o meio-fio ou o degrau da entrada. Permanece sentado. Pede cervejas. Bebe. Não conversa. Não se diverte. Volta pra casa. Dorme. Noite ruim. Injustiça. Preconceito. Morte. Apocalipse.
Era de se esperar, no fim das contas, que ao estender a mão, queiram lhe arrancar o braço. Talvez seja da natureza humana. Talvez seja o único modo que alguns aleijados* encontraram pra descontar suas frustrações. Talvez a idéia de justiça e igualdade que corre na cabeça das pessoas também seja meio aleijada. É talvez pra caralho.
O que acontece é que existe muita gente escrota. Escrota o bastante pra achar que o mundo precisa dar-lhes um prêmio de consolação, ou, talvez, até uma recompensa.
Quer dizer, por um lado tem todo aquele papo altamente filosófico em prol de todo grupo de minorias. Às vezes nem tão minoria assim, no fim das contas. O ponto é, qual a razão de se criarem leis e regras e programas de apoio às pessoas especiais (me refiro a pretos, aleijados, bichas, mulheres, retardados, putas, corinthianos ou a escrotice que vocês quiserem inventar que é uma pobre minoria), se vossa tão iluminada idéia é buscar a igualdade?
"Ó, implacável escritor", vocês me dizem então, com suas vozes débeis, "mas o que deveria acontecer então ao pobre pretinho que é constante vítima de agressões brutais?"
Não sei se isso é um problema pra vocês, mas acontece que agressões brutais, por si só e independente da casta da vítima, é uma porra dum crime. Se você agride um branco, um amarelo, um corno, um político ou uma bichona, tu vai preso do mesmo jeito, cacete! Ou, pelo menos, em teoria.
Mas isso, claro, é ignorável. Criar uma lei que pune aqueles que agridem retardados não faria diferença alguma. Agressores em geral seriam, em teoria, punidos. Nada se perde, daí.
Nosso pequeno problema começa, na verdade, com uma constatação que possivelmente soa um pouco estranha: querem me tirar o direito de ser racista!
Claro. É possível que vosso primeiro pensamento seja "que tipo de vilão exigiria tal direito?". Em absoluto, o ponto não consiste no exemplo propriamente dito, mas em todos os postulados necessários pra que esse direito seja negado a alguém. Vamos por partes.
Em primeiro lugar, deve-se distorcer a idéia de igualdade. Me proibir de odiar australianos, por exemplo, é me obrigar a ser amável com eles. Afinal, se uma imagem social aceitável diante deles não for mantida, automaticamente me torno um odiador criminoso filho da puta.
A segunda implicação é ainda mais terrível: deve-se aceitar que o Estado possui soberania sobre os pensamentos de seus cidadãos. Ou sobre a expressão deles, o que, até certo grau, dá no mesmo. Ou seja, um conjunto de leis decide o que eu não devo pensar. O que é, essencialmente, aceitar que é possível ao estado decidir o que eu devo pensar - resultado obtido pelo simples processo de me ser negado pensar em qualquer coisa que não se queira que eu pense. Lá se vai a liberdade de expressão. Matar a liberdade de expressão é o mais perto que se pode chegar de ferir a liberdade de pensamento.
A idéia de querer poder pensar o Mal ainda pode soar repugnante, mas o conceito de Mal depende de muita coisa - inclusive da cultura, dos valores que o próprio estado nos passou a vida inteira.
A idéia de se criar a obrigação - mesmo que maquiada - de se amar um grupo de pessoas soa absurda vista de qualquer um dos lados. Um cidadão-de-pernas-e-braços-completamente-funcionais não se sentiria nada bem ao ter que ser cordial com algum portador de necessidades locomotivas especiais que seja escroto; e um aleijado, por sua vez, certamente se sentiria deslocado ao saber que as pessoas à sua volta o tratam bem por mera obrigação.
Ao que parece, manter as Roupas do Mundo limpas e na moda é mais importante do que manter a verdade correndo nas suas veias e oleodutos. 
Que eu morra um escroto pra vocês e seus Direitos Androides, mas o que eu faço, faço porque gosto.
* Todas as palavras que nomeiam qualquer classe de seres humanos nesse texto podem ser substituídas de acordo com o gosto e a vontade do leitor. Divirtam-se.
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DEMASIADO CRÍTICO DE SÍ MESMO

Você não sabe o quanto é bom numa coisa até ser obrigado fazê-la de uma forma diferente. Ou melhor: só quando você tenta fazer certa coisa de uma maneira diferente é que você se toca de que não era tão ruim fazendo aquilo quanto imaginava. Provavelmente muita gente já sabia disso, mas eu só tive esse insight agora. Como esta coluna é minha, eu decido sobre o que escrever.
Digamos que você joga bola. Vai lá toda semana com a turma da faculdade, paga dez pilas pela quadra e corre feliz da vida por uma longa e interminável hora. Não é o melhor de todos, mas também nunca foi o último a receber o colete. Tem lá os seus momentos; nada muito brilhante, um golzinho aqui, uma caneta ali. Acabado o jogo o que você pensa é “droga, podia ter jogado melhor”. Todo mundo pensa isso. Somos todos demasiadamente autocríticos.
E ai que eu pergunto: já tentou fazer isso de olhos vendados? Só com uma perna, com os braços amarrados ou vestindo um macacão de neoprene? Já tentou alguma vez fazer isso de uma forma completamente diferente? Não, claro que não. Se o tivesse feito não estava aí reclamando. E não me venha com papinho de que já jogou com chuteira desamarrada, de calça jeans ou sobre o sabão – a questão aqui não é futebol. Aquilo foi só um exemplo. Só tentei demonstrar como a gente se cobra demais, muitas vezes mais do que deveria.
(Não foi um exemplo muito bom. Foi muito superficial; introduziu a ideia  mas ainda é muito contestável. Permitam-me tentar chegar lá com uma história pessoal)

Quando eu era mais novo tinha um cara na minha rua que queria ser jogador de sinuca. Não é um sonho muito comum para um pré-adolescente, mas ele queria porque queria isso. E tenho que admitir que o cara jogava bem. Entrava nos botecos e desafiava tiozões com 30, 40 anos de mesa. Nem preciso dizer que ele arrebentava, afinal isso aqui é uma anedota e nas anedotas tudo sempre dá certo. Mas o problema dele começou no primeiro campeonato.
Não sei direito, mas acho que era um mísero campeonatinho de boteco que custava 30 reais para entrar. O primeiro colocado levava uma grana preta, tipo quase tudo o que fosse arrecadado, e o segundo tinha que se contentar com um engradado de cerveja (o que, convenhamos, já era um belo prêmio). Qual a posição do meu amigo, então com 13 ou 14 anos? Segundo, claro. Ninguém o deixou ficar com a cerveja, porém o vencedor foi gente fina e deu algo como 50 reais pro moleque. Este, por sua vez, ficou desolado.
Sim, desolado. Não por causa da cerveja, que de qualquer maneira foi bebida com o dinheiro do prêmio, mas com o seu desempenho. É inacreditável, eu sei. Ele ficou em segundo e ainda assim achou que foi mal. “Eu parecia um escroto jogando” foi a frase que ele mais repetiu naquele dia. Depois disso ele ainda entrou em alguns campeonatos, ganhou uma meia dúzia e ficou em segundo ou terceiro na maioria. Nessas horas ele sempre repetia: “joguei que nem um escroto, que nem um escroto”.
 
Escroto ou não escroto, queremos as conclusões.
O que isso significa? Não faço ideia  Até agora nada, eu acho. Azar de quem chegou até aqui – já faz tanto tempo que estou escrevendo este texto, entre idas e vindas, que nem sei mais como começou. Presumo que seja aquele papinho que eu tava na cabeça uns dias atrás sobre como as pessoas tem uma má impressão de si mesmas. Enfim, segue o baile.

Um dia esse meu amigo caiu de skate e rolou ladeira abaixo. Quebrou os dois braços, um deles com uma absurda fratura exposta. Teve que por pinos e até uma placa de titânio no lugar do osso do antebraço esquerdo. Não perdeu os movimentos nem das mãos nem dos braços, mas como esse novo osso era menos poroso que o real havia certos movimentos em que os tendões roçavam no parafuso do metal e ardiam como fogo. Um desses movimentos era exatamente a posição da tacada.
 
O cara nunca mais jogou como antes. Na verdade ele nem poderia jogar, mas o vicio fala mais alto. Hoje você vê claramente que ele tem talento, mas as limitações físicas impedem-no de fazer qualquer lance espetacular. Ele apenas joga, como qualquer um jogaria, com um ou outro lance mais ou menos espetacular e nada além disso. Aquele gênio dos botecos se foi e só sobrou mais um para contar história. Hoje ele fala “cara, como eu jogava bem e não sabia”.
 
Eu confirmo: cara, como ele jogava bem. E sabia disso, claro que sabia. Mas não acreditava em si mesmo. Ou até acreditava, não sei, só que ele tinha uma forma tão peculiar de encarar as derrotas que certamente influenciava as jogadas seguintes. Ele seria sempre o segundo pensando daquele jeito. É muito importante acreditar em si mesmo e cobrar-se um pouco menos, sobretudo no esporte – onde as derrotas são perfeitamente normais e aceitáveis. Ninguém é perfeito, já diz o ditado.
 
Não há fórmula para se viver plenamente. As pessoas são muito diferentes. Têm diferentes corpos, culturas, ideologias. O que dá certo para mim não necessariamente funciona com o filho da vizinha. Só é preciso se cuidar com os extremismos. Não ser um fundamentalista é fundamental nessa vida. Não viva só comendo maçãs sem nem cogitar uma banana. E de um pouco de tudo no mundo que se tira a felicidade plena, o verdadeiro alimento da vida. Seja um ser mediano e você será feliz.
 
Bom, pelo menos essa é a minha teoria.
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O MUNDO É ALEIJADO

Texto de um dos meus primeiros blogs/sites,levem em consideração que era um adolescente escrevendo e divirtam-se.

Acontece que ali pros lados da rodoviária, perto de um conjunto habitacional, um certo fulano pede esmola há anos e anos e anos. Vale lembrar, claro, que não muito longe dele costumam figurar um velho sanfoneiro que troca música por moedas, alguns camelôs, às vezes hippies vendendo arame torcido e todo tipo de gente tentando todo tipo de coisa - mesmo que seja guardar carros ou conversar.
A habilidade única do sujeito de quem eu falava, por outro lado, é... nenhuma. O desgraçado passa o dia inteiro debaixo de um guarda-sol, batendo a merda da caneca no chão, sem dizer uma maldita palavra, e acha que eu preciso fornecer capital a ele simplesmente porque ele é - e muito - aleijado. Que seja, ele tem braços e pernas retorcidos e imprestáveis, e uma bela corcunda. Mas o que isso tem a ver com dinheiro? Talvez a ideia seja que eu - e outros transeuntes locais - deva me sentir culpado por algo que nada tem a ver comigo, ou que seja meu dever indenizar o cidadão pelo mal que a Existência lhe fez.
Eu, por outro lado, já vejo essa coisa toda de esmola como um investimento. Talvez me valha à pena pagar por um pouco de boa música na sanfona, ou por uma lavagem razoável no carro, mas qual seria o retorno obtido ao pagar pelo garoto do guarda-sol? Claro, vocês podem me dizer que seria o ingresso do freak-show, mas, mais uma vez, lhes peço singelamente que vejam a coisa sob o meu ponto de vista: Eu não preciso pagar. Não é como se ele fosse andar pra fora dali. Heh.
O ponto é que essa ideia de que precisa existir algum equilíbrio entre justiça e injustiça é completamente furada. Se existisse essa babaquice de Destino, ele seria um ouvinte de Matanza ("Eu não devo a ninguém, devo se tiver a fim, a minha vida é minha e a sua que se foda"). E o mais curioso é que mesmo depois de se foder seguidas vezes, esse tipo de camarada continua com essa ideia - a de que o mundo precisa e vai recompensar quem já nasceu fodido - na cabeça. Esperem sentados, vermes.
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